TEXTO A:
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
texto retirado de: Peter Singer, Ética Prática, Gradiva
As bases da igualdade
Este século assistiu a transformações profundas nas atitudes morais. Uma grande parte dessas mudanças ainda é controversa. O aborto, proibido praticamente em todo o mundo há 30 anos, é hoje legal em muitos países (embora ainda conte com a oposição de sectores substanciais e respeitados da sociedade). O mesmo acontece no que respeita à mudança de atitude para com o sexo extramatrimonial, a homosexualidade, a pornografia, a eutanásia ou o suicídio. Embora as alterações tenham sido grandes, não se chegou a um novo consenso. As questões continuam a ser controversas e podemos defender qualquer das partes sem pôr em risco o nosso estatuto intelectual ou social.
No caso da igualdade parece que as coisas são diferentes. A alteração de atitude em relação à desigualdade – em especial à desigualdade racial – foi não menos súbita e profunda que as mudanças de atitude em relação ao sexo, mas foi mais completa. Os pressupostos racistas partilhados pela maioria dos Europeus na viragem do século são hoje totalmente inaceitáveis, pelo menos na vida pública. Um poeta não podia hoje escrever sobre “raças inferiores à margem da lei” e manter – na realidade, aumentar – a sua reputação, como fez Rudyard Kipling em 1987. Não quer isto dizer que os racistas tenham desaparecido, mas apenas que têm de disfarçar o seu racismo se quiserem que a sua política e as suas ideias tenham alguma hipótese de aceitação geral. A própria África do Sul abandonou o apartheid. O princípio de que todos os seres são iguais faz hoje parte da ortodoxia política e ética dominante. Mas o que significa ao certo tal princípio e por que motivo o aceitamos?
(…)
Quando dizemos que todos os seres humanos são iguais, independentemente da raça ou sexo, o que estamos exactamente a proclamar? Os racistas, os sexistas e outros adversários da igualdade não têm deixado de assinalar que, qualquer que seja o critério que escolhamos, não é pura e simplesmente verdade que todos os seres humanos são iguais. (…)
(…)
Vimos no capítulo anterior que, quando fazemos um juízo ético, temos de ir além de um ponto de vista pessoal ou sectorial e ter em consideração os interesses de todos os afectados. Isto significa que ponderamos interesses, considerados simplesmente como interesses e não os nossos interesses, os interesses dos Australianos ou dos Europeus. Isto proporciona-nos um princípio fundamental de igualdade: o princípio da igualdade na consideração dos interesses.
A essência do princípio da igualdade na consideração de interesses exige que se atribua o mesmo peso, nas nossas deliberações morais, aos interesses semelhantes de todos os afectados pelas nossas acções. Significa isto que, se só X e Y forem afectados por uma possível acção e se X se arriscar a perder mais do que Y se habilita a ganhar, o melhor será não praticar a acção. Não podemos dizer, se aceitarmos o princípio da igualdade na consideração dos interesses, que é melhor realizar essa acção, apesar dos factos descritos, porque estamos mais preocupados com Y do que com X (…)
(…) Mas o elemento fundamental – a consideração dos interesses das pessoas, quaisquer que sejam – tem de aplicar-se a todas as pessoas, independentemente da raça, sexo ou desempenho num teste de inteligência. Escravizar aqueles que registassem um quociente de inteligência abaixo de determinado valor não seria compatível com a consideração igualitária (…). A inteligência nada tem a ver com muitos interesses importantes que os seres humanos possuem, como o interesse de evitar a dor, de desenvolver as suas próprias capacidades, de satisfazer necessidades básicas de alimentação e abrigo, de desfrutar relações de amizade e de amor com outras pessoas e de ter a liberdade de procurar realizar os seus próprios projectos sem a desnecessária interferência alheia. A escravatura impede os escravos de satisfazerem esses interesses como gostariam; e os benefícios que confere aos donos de escravos não são de importância comparável ao prejuízo que causam aos mesmos.
Logo, o princípio da igualdade na consideração dos interesses é suficientemente forte para excluir uma sociedade esclavagista baseada na inteligência, assim como formas mais simplistas de racismo e de sexismo. Também exclui a discriminação baseada na deficiência, quer física quer intelectual(…). O princípio da igualdade na consideração de interesses pode, portanto, constituir uma forma defensável do princípio de que todos os seres humanos são iguais, uma forma a que podemos recorrer para discutir casos mais controversos respeitantes à igualdade.(…)
Peter Singer, Ética Prática, cap.2, Gradiva
Questões:
1- O que significa, segundo o autor, o princípio, que faz actualmente parte da ética dominante, segundo o qual “todos os seres humanos são iguais”?
2- Explique em que medida o princípio da igualdade na consideração dos interesses é suficientemente forte para excluir várias formas de discriminação baseadas na raça, sexo, inteligência, deficiência física ou intelectual, etc.
TEXTO B:
OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE
Texto retirado de: John Rawls, Uma Teoria da Justiça, ed. Presença
O meu objectivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e eleva a um nível superior a conhecida teoria do contrato social, desenvolvida, entre outros, por Locke, Rousseau e Kant. Para o fazer, não vamos conceber o contrato original como aquele que permite a adesão a uma sociedade determinada ou que estabelece uma determinada forma de governo. A ideia condutora é antes a de que os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica formam o objecto do acordo original. Esses princípios são os que seriam aceites por pessoas livres e racionais, colocadas numa situação inicial de igualdade e interessadas em prosseguir os seus próprios objectivos, para definir os termos fundamentais da sua associação. São estes princípios que regulamentam os acordos subsequentes; especificam as formas da cooperação social que podem ser introduzidas, bem como as formas de governo que podem ser estabelecidas. É esta forma de encarar os princípios da justiça que designo por teoria da justiça como equidade.
[...]
Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa concepção de justiça. Entre essas características essenciais está o facto de que ninguém conhece a sua posição na sociedade, a sua situação de classe ou estatuto social, bem como a parte que lhe cabe na distribuição dos atributos e talentos naturais, como a sua inteligência, a sua força e mais qualidades semelhantes. Parto inclusivamente do princípio de que as partes desconhecem as suas concepções do bem ou as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais. Uma vez que todos os participantes estão em situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa (fair). Dadas as circunstâncias da posição original, a simetria das relações que entre todos se estabelecem, esta situação inicial coloca os sujeitos, vistos como entidades morais, isto é, como seres racionais com finalidades próprias e — parto desse princípio — capazes de um sentido da justiça, numa situação equitativa. [...]
[...]
[...] Os sujeitos colocados na situação inicial escolheriam dois princípios bastante diferentes: o primeiro exige a igualdade na atribuição dos direitos e deveres básicos, enquanto o segundo afirma que as desigualdades económicas e sociais, por exemplo as que ocorrem na distribuição da riqueza e poder, são justas apenas se resultarem em vantagens compensadoras para todos e, em particular, para os mais desfavorecidos membros da sociedade. Decorre destes princípios que as instituições não podem ser justificadas pelo argumento de que as dificuldades de alguns são compensadas por um maior bem total. Pode, em certos casos, ser oportuno que alguns tenham menos para que outros possam prosperar, mas tal não é justo. Porém, não há injustiça no facto de alguns conseguirem benefícios maiores que outros, desde que a situação das pessoas menos afortunadas seja, por esse meio, melhorada. A ideia intuitiva é a seguinte: já que o bem-estar de todos depende de um sistema de cooperação sem o qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, a divisão dos benefícios deve ser feita de modo a provocar a cooperação voluntária de todos os que nele tomam parte, incluindo os que estão em pior situação. No entanto, tal só pode acontecer se os termos propostos forem razoáveis. Os dois princípios atrás mencionados parecem constituir uma base equitativa para um acordo, na base do qual os mais bem dotados, ou os que tiveram mais sorte na sua posição social — vantagens essas que não foram merecidas —, podem esperar obter a colaboração voluntária de outros, no caso de um sistema efectivo de cooperação ser uma condição necessária para o bem-estar de todos. Quando tentamos encontrar uma concepção de justiça que elimine os acasos da distribuição natural de qualidades e as contingências sociais como vantagens na busca de benefícios económicos e políticos, é a estes princípios que somos conduzidos. Eles são o resultado do facto de excluirmos os aspectos da realidade social que parecem arbitrários de um ponto de vista moral.
(…)
(…) O meu objectivo é produzir uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitário em geral e, portanto, às suas diversas versões. Em minha opinião, o contraste entre a visão contratualista e o utilitarismo é essencialmente o mesmo em todos os casos. (…) A ideia central (do utilitarismo) é a de que a sociedade está bem ordenada e, portanto, é justa, quando as suas instituições principais estão ordenadas de forma a conseguir a maior soma líquida de satisfação, obtida por adição dos resultados de todos os sujeitos que nela participam.
(…)
John Rawls, Uma Teoria da Justiça, ed. Presença
Questões:
1- Segundo Rawls, os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica da sociedade são os que seriam aceites por pessoas livres e racionais numa posição de igualdade original. Explicite essa “posição original” que permite, segundo o autor, a escolha de princípios de justiça a coberto de um “véu de ignorância”.
2- Por que é que a “posição original” garante um acordo ou negociação equitativa?
3- Explicite os dois princípios da justiça que os sujeitos colocados na “posição original” escolheriam.
4- Segundo a perspectiva utilitarista da justiça, uma sociedade é justa quando as suas instituições estão ordenadas de forma a conseguir o maior bem para o maior número de pessoas, e que “ as dificuldades de alguns são compensadas por um maior bem total”. Concordará a perspectiva contratualista de Rawls e os seus dois princípios com esta perspectiva da justiça? Justifique.