Os Esquimós e os valores morais
O ímpeto original do relativismo cultural resulta da observação de que as culturas diferem de forma dramática nas suas perspectivas do que é certo e errado. Mas até que ponto diferem realmente? [...]
Pensemos mais uma vez nos esquimós, que com frequência matam crianças perfeitamente normais, especialmente raparigas.
Não aprovamos tais coisas; na nossa sociedade, um pai que tivesse morto uma criança seria preso. Parece, pois, haver uma grande diferença nos valores das nossas duas culturas. Mas imaginemos que perguntamos a razão pela qual os esquimós fazem isso. A explicação não é eles terem menos afecto pelos filhos ou menos respeito pela vida humana. Uma família esquimó protegerá sempre os seus filhos se as condições o permitirem. Mas eles vivem num meio extremamente duro, onde a comida escasseia. Um postulado fundamental do pensamento esquimó é: «A vida é dura e a margem de manobra pequena». Uma família pode querer alimentar os filhos mas não poder fazê-lo.
Como em muitas outras culturas «primitivas», as mães esquimós alimentam os seus filhos durante um período de tempo muito mais longo do que as mães da nossa cultura. A criança é alimentada ao peito da mãe durante quatro anos, por vezes mais. Por isso, mesmo nas melhores épocas, há limites para o número de filhos que uma mãe pode manter. Além disso, os esquimós são um povo nómada - impossibilitados de se dedicarem à agricultura, têm de viajar em busca de comida. As crianças têm de ser transportadas ao colo, e uma mãe só pode levar um bebé na sua parca enquanto viaja ou realiza tarefas diárias. Os outros membros da família ajudam como podem.
Os bebés do sexo feminino são mais prontamente rejeitados porque, primeiro, nesta sociedade os homens são os principais fornecedores de comida - são eles os caçadores, de acordo com a divisão social do trabalho - e torna-se obviamente importante manter um número suficiente de fornecedores de comida. Mas há igualmente uma segunda razão importante. Uma vez que a taxa de mortalidade dos caçadores é elevada, o número de homens adultos que morrem prematuramente ultrapassa em muito o das mulheres que morrem cedo. Assim, se os bebés masculinos e femininos sobrevivessem em números iguais, a população feminina adulta ultrapassaria em muito a população masculina. Examinando as estatísticas, um autor concluiu que «se não fosse o infanticídio de crianças do sexo feminino [...] haveria aproximadamente uma vez e meia mais mulheres do que homens produtores de comida».
Portanto, entre os esquimós, o infanticídio não é sinal de uma atitude no fundamental diferente perante as crianças. É pelo contrário um reconhecimento de que por vezes são necessárias medidas drásticas para assegurar a sobrevivência da família. Apesar disso, matar a criança não é a primeira opção. A adopção é comum; os casais sem filhos ficam especialmente felizes por encarregar-se dos «excedentes» dos casais mais férteis. Matar é apenas o último recurso. Sublinho isto para mostrar que os dados em bruto dos antropólogos podem induzir em erro; podem fazer as diferenças entre culturas parecer maiores do que são. Os valores dos esquimós não são de modo algum diferentes dos nossos. Acontece apenas que a vida os obriga a escolhas que nós não temos de fazer.
JAMES RACHELS, Elementos de Filosofia Moral
ACTIVIDADE
1. Rachels procura mostrar que a diferença entre a sociedade esquimó e a nossa não está nos valores que cada uma defende, mas nas diferentes condições do meio físico. Explique o ponto de vista de Rachels.
2. Exponha-as .