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002 Liberdade e livre arbítrio

O problema do livre-arbítrio
Paulo Ruas
Escola Básica e Secundária de Velas, S. Jorge, Açores

Num livro que as salas de aula contribuíram para tornar famoso, podemos encontrar a seguinte passagem:

Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas brancas que, em África, constroem formigueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedras? Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que protege outros insectos, o formigueiro serve-lhes de carapaça colectiva contra certas formigas inimigas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as térmitas-operário começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afectada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas inimigas se lançam ao assalto. As térmitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu avanço, enquanto as ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada… mas fecham-na deixando de fora as pobres e heróicas térmitas-soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas formigas-soldado pelo menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes? Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na Ilíada, Homero conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé firme fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfurecido campeão dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo para cumprir o seu dever, que consiste em defender a família e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém dúvidas: Heitor é um herói, um homem valente como deve ser. Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as térmitas-soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homero se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas, a mesma coisa que qualquer uma das térmitas anónimas? Por que nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que o dos insectos? Qual a diferença entre um e outro caso? Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-soldado lutarem e morrerem porque têm de o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer cera para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela natureza para cumprir a sua heróica missão. O caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homero nos conte a sua história com uma emoção épica. Ao contrário das térmitas, dizemos que Heitor é livre, e por isso admiramos a sua coragem.
Fernando Savater, Ética para um Jovem (Lisboa: Dom Quixote, 2005)

Ética para um Jovem

O louvor de Heitor é justificado porque:

  1. Heitor não tinha inevitavelmente de enfrentar Aquiles em combate; podia seguir outro caminho: por exemplo, fingir-se doente e recusar-se a combater. Tinha, portanto, cursos alternativos de acção ao seu dispor.
  2. Optar por um ou outro desses cursos alternativos de acção apenas dependia de Heitor: é ele o autor das suas acções. Heitor não nasceu herói; tornou-se herói ao decidir sê-lo.

Entende-se por curso alternativo de acção qualquer opção que esteja disponível ao agente e que este possa pôr em prática.

As térmitas não merecem louvor porque:

  1. As térmitas-soldado comportam-se sempre da mesma forma quando o seu formigueiro está em perigo. Mesmo que quisessem não poderiam evitar agir assim porque é essa a sua natureza. O seu comportamento é causado pelo programa genético que herdaram e que exclui que elas adoptem outros cursos alternativos de acção sempre que o formigueiro é atacado.
  2. O curso de acção adoptado não depende delas: as térmitas-soldado não escolheram sacrificar-se para salvar as outras térmitas. Isso foi-lhes imposto pela sua natureza (os seus genes).

Entende-se por programa genético aquilo para o qual os genes predispõem o organismo. Trata-se do conjunto de instruções bioquímicas que fazem com que um organismo desenvolva características de determinado tipo, como a cor dos olhos, asas em vez de mãos, etc. Estas instruções estão no núcleo das células; os genes são o alfabeto em que estão escritas, são as unidades básicas que as compõem.

As diferenças detectadas entre o comportamento de Heitor e o das térmitas-soldado permitem-nos identificar em que condições uma acção deve ser considerada livre e em que condições o não é.

Isto dá-nos a seguinte definição: um agente pratica livremente uma acção X se e somente se:

  1. Tem ao seu dispor mais do que um curso alternativo de acção.
  2. Está sob o seu controlo (apenas depende dele) praticar ou não a acção.

Entendida deste modo, a liberdade é sinónimo de autodeterminação. Um agente possui autodeterminação quando é ele próprio (auto) que faz acontecer (determina) a acção. É isto que significa dizer que temos nas mãos o nosso destino ou que somos os autores do que virão a ser as nossas vidas. Supomos ser os autores da pessoa em que nos tornámos porque podíamos ter escolhido outro rumo para a nossa vida (condição 1) e ainda porque nos coube realmente a última palavra na escolha do caminho que seguimos, e a ninguém mais (condição 2).

Exemplos de comportamentos não livres: a cleptomania ou alguém que não consegue sair de uma sala porque está fechado à chave. Em qualquer dos casos o agente não tem o controlo da situação (mesmo que faça o que deseja fazer).

Os cleptomaníacos são pessoas que sofrem de uma tendência doentia e incontrolável para roubar, não conseguindo deixar de o fazer mesmo que isso implique grandes problemas para si próprias: com a justiça, etc. O cleptomaníaco deseja fazer o que faz (roubar), embora muitas vezes preferisse não ter esse desejo.

Heitor e as causas do seu comportamento

Heitor enfrentou Aquiles voluntariamente; o seu comportamento foi intencional. Heitor enfrenta Aquiles voluntariamente porque deseja salvar Tróia dos invasores e acredita que, nas circunstâncias em que se encontra, enfrentar Aquiles em combate é uma maneira de evitar que os invasores consigam o que querem e um dever para com os seus concidadãos (a que não deseja fugir).

Este desejo e esta crença, em conjunto, causaram o comportamento de Heitor.

Mas podemos agora perguntar: o que terá dado origem a este desejo e esta crença? Qual a sua causa? Se Heitor não tivesse a personalidade que tinha (honesto, corajoso, com um forte sentido de responsabilidade para com os seus concidadãos, etc.) talvez optasse por fingir-se doente para não enfrentar Aquiles. A coragem e a honestidade são características que reflectem a personalidade das pessoas. Este desejo e crença de Heitor têm origem na sua personalidade.

Mas qual é a causa da personalidade de Heitor? Talvez algumas das características da sua personalidade já estivessem previstas nos seus genes e nascido com ele; outras, terá sido ao longo do seu desenvolvimento, através do contacto com o seu meio ambiente, que as adquiriu. Foram, portanto, os genes e a influência do meio ambiente que deram origem à sua personalidade (que a causaram).

Mas em que consiste um acontecimento ser a causa de outro, ou um acontecimento ser o efeito de outro?

Vejamos alguns exemplos. A queda do pedaço de giz que seguro na mão, ao abri-la, é uma consequência (um efeito) da lei da gravidade (causa). O acender de um fósforo é uma consequência de: 1) haver oxigénio no ar; 2) a lixa estar seca; 3) a pressão do fósforo na lixa ser adequada; 4) o fósforo estar em condições. A ocorrência simultânea dos factores 1-4 é a causa que torna fisicamente impossível o fósforo não acender (efeito). Uma barra de metal aquecida até à temperatura apropriada aumenta — é uma lei da natureza — de volume (dilatação).

Estas considerações sugerem a possibilidade de os genes de Heitor em conjunção com as condições físicas e sociais em que cresceu fazerem com que viesse a ter a personalidade que tinha.

Esta hipótese obriga-nos a colocar as seguintes questões. Poderia o comportamento de Heitor ser diferente mantendo-se inalteradas as causas que lhe deram origem? Poderia ele agir de outra maneira tendo a personalidade que tinha e sendo as circunstâncias as que eram?

Paulo Ruas In site criticanarede (a arte de pensar)

 

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